Quem disser que não conhece o Mercado Central corre o risco de ser tachado de mentiroso. O queridíssimo MC é unanimidade e faz parte do nosso dia a dia. É um fenômeno. O centro de compras de Belo Horizonte é o terceiro melhor do mundo - o mais popular, mais completo, mais visitado e admirado desde 1929. Afinal, são 95 anos de convivência e intimidade, amor e paixão com os moradores, visitantes e turistas que por lá transitam muito felizes e muito à vontade, como se estivessem em suas próprias casas. O nosso Mercado Central é também uma importante referência turística.
Criado pelo prefeito Bernardo Monteiro (1857/1924), em 1900, identificado como Mercado Municipal, para atender às necessidades de uma nova e recém inaugurada capital, em fase de crescimento alucinante. Em 7 de setembro de 1929, na administração do prefeito Cristiano Machado (1893/1953), recebeu a denominação de Mercado Centra.Surgiu com a junção de duas feiras livres, que existiam nas praças Rui Barbosa (Estação), e Rio Branco (Rodoviária), passando a ocupar a área de 14.000 m² do ex-campo do América decacampeão - situada no quarteirão formado pela avenida Paraopeba (Augusto de Lima), rua Santa Catarina, rua Goitacazes e Curitiba, reunindo 22 lotes. Além de legumes, frutas e hortaliças, aves, e coisas de época - o MC passou a comercializar produtos alimentícios: queijos, doces, iguarias, comidas típicas e peças de artesanato, transportados em lombo de burros e em carroças.
O então prefeito de BH, Jorge Carone Filho (1919/2010), enfiou na cabeça que não cabia à prefeitura administrar o MC e anunciou a privatização do centro de compras, através de um leilão, despertando uma celeuma sem tamanho, em todos os segmentos da metrópole. Dezenas de comerciantes, com anos e anos de trabalho heroico, grande maioria com pequenas barracas de madeira, montadas e armadas com simplicidade, brigaram contra a ideia do prefeito, com natural receio de perderem o negócio, única fonte de renda que possuíam. Mas valeu o esforço e tenacidade dos barraqueiros, que cumpriram muito bem o seu papel de lutarem por um ideal e acabaram vencendo a disputa. Criaram uma cooperativa, deixaram de ser barraqueiros e viraram os novos donos do Mercado Central.
Em 1964 - há exatos 60 anos -, com apoio financeiro do Banco Mercantil do Brasil, 100 comerciantes assumiram o sério compromisso de transformarem-se em empreendedores, responsáveis por reconstruir e tocar o Mercado Central, a essa altura uma espécie de nau sem rumo, a céu aberto. Hoje é um espaço público que serve de exemplo de empreendimento bem sucedido, com mais de 400 lojas funcionando organizadamente - um centro de compras, de lazer, cultura e entretenimento de alto nível, comparável aos melhores do mundo. Um orgulho para Belo Horizonte.
A partir da década de 1960 os comerciantes do Mercado Central passaram a sofrer a inevitável concorrência das mercearias, das inúmeras redes de supermercados, dos conglomerados internacionais de varejo e dos shopping centers, oferecendo modernidades, conforto e sofisticados diferenciais aos compradores. Surgiram também inúmeros sacolões, completos e bem montados em bairros próximos e em pontos estratégicos na periferia da grande BH. O MC se preparou com competência e criatividade e venceu a disputa. Recentemente, anunciou a inédita parceria com a empresa KTO, para atuarem num acordo de ”naming rights”, modalidade empresarial em operação no mundo inteiro, uma atitude inovadora. A iniciativa é pioneira no segmento e, dando certo, como se espera, deverá ser o destaque na festança popular comemorativa do centenário, em 2029. Estamos apostando.
Tenho o privilégio de conviver com o MC desde os 7 anos de idade. Meu pai, o sargento Aníbal Gangana(1905/1974), partia de Santa Tereza levando dois ou três filhos menores ao Mercado (éramos 15 irmãos ). Sempre ao meio dia dos domingos, cada um com uma sacola, para aproveitarmos a xepa (arrematação), de final da jornada de trabalho, hora em que os barraqueiros baixavam os preços das mercadorias, alguns até à metade, para “fechar a banca” e voltar pra casa com tudo vendido. Muitos compradores da classe mais baixa, disputavam espaço na hora da xepa para encher suas sacolas.
Então, desde cedo criei o hábito de ir o MC para comprar, especialmente queijo mineiro, doces caseiros, artigos de feijoada, pimentas, farinha especial, sem esquecer a “marvada”. Como também sou filho de Deus, de vez em quando apareço para apreciar uma rabada no Mané Doido, ou entrar na fila para comer no restaurante Casa Cheia.
Um certo ponto de encontro de amigos no MC acabou virando notícia na virada dos anos 2.000. O surgimento de um bar inusitado: o “Anexo”. Éramos cerca de 20 colegas, de variadas atividades profissionais, fieis consumidores de cerveja e tira-gostos, que se encontravam e se divertiam, caprichosamente, aos sábados, no Rei da Feijoada, do falecido João Dias. Batizada pelo apresentador Acir Antão, da rádio Itatiaia de “Turma do Tanque” (ele próprio um dos integrantes), por ficarmos todos de pé, próximos, um do outro, ao redor do tanque da loja, bebendo cerveja, provando uma pura, degustando um fígado acebolado, porções de queijo parmesão e os torresminhos. Um papo descontraído de duas, três horas: política, futebol, causos, piadinhas e outras coisas.
Sabíamos que criamos um certo incômodo ao dono da casa - aquela quantidade de homens, à toa, bebendo e perturbando o ir e vir no reduzido espaço de vendas, exatamente num dos melhores dias. Apareceu uma plaqueta na porta de uma lojinha de panelas e artigos de cozinha, a apenas 10m do Rei da Feijoada: ALUGA-SE. Tive um estalo na moleira e falei: “Gente, vamos alugar aquela lojinha ali, olhem a placa! A gente libera o João desse sacrifício, de nos tolerar dentro da loja, ocupando espaço”. Deu certo: o aluguel de 400 reais por mês, para ratear entre 20. Fizemos uma vaquinha e compramos um freezer, um mini fogão, tipo fogareiro; frigideiras, pratos, colheres e facas; copos, pequenos complementos e material de limpeza. Instalamos uma portinha tipo “vai e volta” e uma tábua balcão de madeira, de 15cm de largura, na frente, unindo as duas paredes.
Abrimos o “Anexo” - o único bar do mundo que não tinha caixa registradora e apenas uma mesinha de serviços, sem cadeiras. Anexo ao Rei da Feijoada. Contratamos uma ajudante para cuidar de abrir e limpar o espaço, aos sábados, de manhã; colocar cerveja pra gelar e cuidar dos tira-gostos. Criamos uma logomarca que foi impressa em camisetas de malha. Virou um auê, uma nova e diferenciada aglomeração. As pessoas paravam, olhavam com curiosidade e queriam saber o que era aquilo! E viam a placa externa que tinha só a logomarca e o nome “Anexo”.
Algumas pessoas entravam, desconfiadas, e eram servidas, como se fosse um bar normal. Queriam pagar e não tinham como. Comerciantes do mercado reclamaram e tomaram conhecimento que a cerveja, a cachaça, as carnes, jiló, ovos, queijos, farinha, temperos, legumes - tudo era adquirido no próprio mercado. Outros passaram a reclamar que o excesso de pessoas curiosas, no corredor, estava atrapalhando. A rádio Inconfidência mandou um repórter e transmitiu ao vivo do local, falando da abertura do bar inusitado, exclusivo de amigos e sem caixa registradora, sem mesas e cadeiras. As notícias começaram a pipocar nas colunas de jornais. O proprietário da loja alugada, encasquetou de vez com o sucesso do negócio e pediu o ponto de volta.
Fazer o quê? Foi bom enquanto durou. Menos de um ano.
Parafraseando o grande poeta e músico maranhense Catulo da Paixão Cearense, e o saudoso compositor e cantor pernambucano Luiz Gonzaga, autor e intérprete da clássica toada sertaneja “Luar do Sertão” (de 1914): - “Não há ó gente, ó não lugar como esse…Mercado Central”!
A “Turma do Tanque”, que emplacou o “Anexo”, agarradinho ao Rei da Feijoada, no Mercado Central, teve a liderança informal do frequentador assíduo e amigo do mercado, o saudoso desembargador Ayrton Maia. E contou com o apoio irrestrito do João Dias (in memorian), dono do Rei da Feijoada e do Frigorífico Imperatriz - o amigo anfitrião de todos os sábados, durante muitos anos.
(*) Hamilton Gangana é publicitário
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